segunda-feira, 29 de junho de 2015

Cartas de uma angolana para um amigo brasileiro (01)

 

Dunga post

O que Dunga disse foi uma confissão pública daquilo que os brancos brasileiros acham dos seus compatriotas afrodescendentes. Não foi "ato falho" foi exteriorização de um sentimento bem verdadeiro que saiu numa hora em que estava realmente magoado por tanto ter apanhado.

Aqui em Angola onde existem várias línguas nacionais e alguns têm vergonha de as falar (fruto do colonialismo) os mais velhos dizem o seguinte: -"É na hora de muita dor que cada um chora na sua língua materna e aí se descobre de que região o indivíduo é" o racismo faz parte da língua materna do Dunga. Por isso ele falou que, apanha que nem afrodescendente. Assumiu seu racismo. Apenas se equivocou quando disse que afrodescendente gosta de apanhar. Negro não gosta de apanhar, eles é que gostam de bater cruelmente em seres humanos semelhantes, porque se julgam superiores.

Tem agressão maior do que tirar os negros da sua terra natal, escraviza-los durante séculos, jogá-los numa praça pública sem eira nem beira (a tal de abolição) e depois continuar a massacrar por séculos os seus descendentes? E depois um descendente daqueles escravizadores diz que afrodescendente gosta de apanhar? ? Pelo amor de Deus! ! Dunga deveria ser processado por injúria racial e difamação. Difamação por ter mentido que afrodescendente gosta de apanhar. Ele deveria demonstrar provas de como os afrodescendentes gostam de apanhar. E para terminar gostaria de dizer que ser afrodescendente não se acha que é, apenas se é.

Dizer que acha ser um afrodescendente é uma verdadeira agressão ao estado de quem o é de fato. Minha solidariedade aos meus irmãos afrodescendentes espalhados pela Diáspora.”

 

Judith Luacute Judith Luacute

de Luanda – Angola

Judith Luacute é enfermeira formada na USP, graças ao intercâmbio cultural e de cooperação entre Brasil e Angola.  Trabalhou 15 anos consecutivos em hospitais brasileiros na cidade de São Paulo, onde adquiriu a experiência que dá suporte ao seu trabalho em Angola.

Ícone de profissionalismo em seu país, uma mulher moderna, que não esqueçe de cultuar as tradições e tem seu coração imensa ponte entre Angola e Brasil.

Olorum me perrnita celebrar um dia sua presença, amiga, irmã virtual nossos posts são cartas unindo corações almas através do Atlântico. Resgates…

Hugo Ferreira Zambukaki – São Paulo – Brasil

Cartas para minha irmã angolana

Histórias que você conta são significativas Judith Luacute. Tenho um momento que ao relembrar as lutas, numa reunião as emoções embargavam minha fala e marejavam meus olhos. Josi companheira e esposa registrou em vídeo minha fala emocionada
Momentos não escritos em livros, mas infelizmente vivenciados por nós em nossas vidas, e esses nossos depoimentos deveriam ser registrados para não serem esquecidos. Por serem nos magoarem ferem nossos sentimentos.
A Universidade de São Paulo, surgiu de uma derrota militar do estado de São Paulo perante a Ditadura Vargas. A Revolução de 1932 teve em suas fileiras inúmeros negros e índios, não só em batalhões formados de voluntários, mas nos quadros do Exército Brasileiro que lutaram contra a Ditadura.
O negro brasileiro escravizado, buscava uma forma recuperar sua liberdade e restaurar sua cidadania. O Exército desde a Guerra do Paraguai (1864/1870) contou com uma maioria de soldados negros. Participar do Exército era uma forma dos negros e pardos livres se inserirem na sociedade brasileira. A Escola Militar de Resende RJ formou oficiais militares vindos das camadas populares (década de 20 e meados de 30). O subcomandante militar de São Paulo era o coronel Palimércio de Resende negro.

 Coronel Palimercio Coronel Palimércio de Resende subcomandante da Revolução de 1932 em São Paulo

Meu pai tenente Ferreira foi dos tenentes revolucionários que lutaram contra a Ditadura, teve sua perna metralhada e só não ocorreu a amputação porque fugiu do hospital no dia marcado. Sobreviveu e nasci em 1946.

Tenente Ferreira e companheiros de farda (185x260) (276x389)

Tenente Ferreira (José Ferreira da Silva meu pai) ao centro assinalado com companheiros de farda “tenentistas” .

Perdida a Revolução de 32 contra a Ditadura, a elite criou um projeto de formar lideranças da burguesia paulista, surgia aí a USP a Universidade de São Paulo.
Se na Revolução de 1932 havia espaço para as classes populares (negros, índios e pobres) lutarem, não havia espaço na Universidade criada. Daí a surpresa do segurança negro em barrar sua entrada. Quem lutou e derramou o sangue por São Paulo é barrado em entrar na USP pela profunda desigualdade social que existe no Brasil.
Posso dizer que a situação piorou desde a sua vinda, tive contato com jovens estudantes angolanos, amigos de Zulmira Cardoso a jovem morta em 2012 por racistas brasileiros no Brás, e um deles me dizia: “-Conheci o que era o racismo brasileiro, quando desci no Aeroporto. ”

Zulmira bata
Há uns seis meses estudantes angolanos da USP, foram espancados pela polícia, quando um deles teve seu celular roubado e com ajuda dos amigos tentou recuperar dos ladrões. Na briga ocorrida chamaram a polícia, que chegando bateu em quem era mais escuro (no caso os estudantes angolanos).
Esses fatos não são locais, é uma questão mundial. Não só dos africanos da Diáspora causada pela escravização, mas hoje pela imigração. A África continua sendo espoliada e explorada, intervenções militares dos países ditos civilizados destruíram estados nacionais instalando o caos forçando a saída desses países. Se parte da Europa e o Estados Unidos são ricos é em função de uma política imperialista e exploradora de países ditos subdesenvolvidos.
Lutamos, tentamos nos organizar, coloquei hoje fotos que registrei uma manifestação de nossos companheiros em frente ao Palácio do Planalto em 2012. O caminho é longo...
Que suas memórias e as nossas formem uma união efetiva entre nossos povos em lados diferentes do Atlântico, mas irmãos em luta e coração. Grande abraço amiga, companheira de luta, minha irmã.

Hugo Ferreira Zambukaki